Deixai-vos reconciliar com Deus
“Deixai-vos reconciliar com Deus”. A interpelação do Apóstolo Paulo, na segunda Carta aos Coríntios, ecoa com intensidade na abertura do tempo da Quaresma. Acolhê-la é oportunidade para se evitar graves fracassos humanos e relacionais, embora tudo o que exige o cultivo da interioridade cause estranheza em um mundo fortemente influenciado pelo domínio das exterioridades. Na sociedade contemporânea, o exótico e a lógica das aparências despertam mais a atenção das pessoas, enquanto os valores que deveriam prevalecer são deixados de lado, a exemplo das preciosas lições reunidas na Palavra de Deus. Ensinamentos que podem ser aprendidos a partir de diferentes perspectivas – literária, antropológica, teológica – ainda mais enriquecidos quando iluminados pela fé.
Esse conjunto de sabedorias atravessa os séculos. Tem muito a contribuir para que a sociedade funcione adequadamente e depende, sobretudo, da interioridade de cada pessoa. Os diferentes saberes, em especial os relacionados à técnica ou à objetividade científica, são muito importantes. Mas esse conhecimento, por si só, não consegue alcançar a consciência ético-moral que habita na intimidade do ser humano, orientando comportamentos nos parâmetros do bem, da honestidade, da justiça e da verdade.
Diante de todos está, assim, o desafio de vencer as “areias movediças” das tentações, que induzem a trocar o inegociável pelo caminho aparentemente mais fácil. Uma batalha que se estabelece no recôndito da consciência, onde decisões devem ser forjadas por valores éticos e morais. A interioridade – não o domínio das aparências – é o núcleo mais precioso de sustentação da vida. Lá estão os pilares que separam homens e mulheres dos fracassos e de cenários vergonhosos, marcados pelas diferentes formas de violência, discriminações, corrupção e tantos outros males.
Ecoe, na intimidade de todos, o convite: reconciliai-vos com Deus, para assegurar mudanças pessoais e, consequentemente, em contextos mais amplos, na sociedade. A interioridade é valioso tesouro carregado em vaso de barro. E neste exigente momento da história, o tesouro da interioridade requer ainda mais atenção e cuidado. Sem esse zelo, prevalecerão comportamentos condenáveis, similares ao hábito da mentira. Sabe-se que existem pessoas tão habilidosas na formulação de mentiras que suas palavras aparentam ser verdadeiras. São indivíduos competentes para lidar com imagens e o regime da exterioridade, hábeis na administração de suas ações para “driblar” a opinião pública. Sem conseguir visitar e reconfigurar a própria interioridade, permanecem submissos a interesses prejudiciais à sociedade.
E o desafio existencial de se reconciliar com Deus se torna ainda maior quando o coração humano está contaminado pela soberba. Pensa-se enganosamente que as próprias escolhas são inquestionáveis, o que impede a necessária autoavaliação sobre modos de agir e enxergar a realidade. Enjauladas na obtusidade, as relações equivocadas se repetem. Assim, na base das grandes e esperadas reformas, capazes de garantir principalmente o bem dos pobres e a demolição dos privilégios de oligarquias, está a reforma individual de cada pessoa. Sem vencer as barreiras que impedem a avaliação interior e, consequentemente, o aprimoramento pessoal, a sociedade continuará a conviver com líderes que criam ilusões, prometem melhorias para a coletividade, mas são incapazes de oferecer respostas concretas aos graves problemas atuais.
As mudanças indispensáveis para promover o bem comum somente virão com a esperada qualificação humana e espiritual. Sem essa qualificação, permanecerão a ensandecida disputa pelo poder, as idolatrias que alimentam o mal, os demolidores do patrimônio público, as devastações do meio ambiente, o desrespeito à história cultural e religiosa de culturas e povos, com anuências espúrias e medíocres para práticas condenáveis.
O tempo da Quaresma é oportunidade para investir na dimensão espiritual, indispensável à qualificação pessoal. Percorridos adequadamente os caminhos e as dinâmicas deste tempo, serão alcançadas as mudanças necessárias na interioridade, capazes de promover as almejadas transformações sociais. O primeiro passo é acolher, com humildade, admitindo a frágil condição humana, este convite: reconciliai-vos com Deus.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
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