Memória de São Justino, mártir

Justino nasceu na região da Samaria nos começos do século II. Como outros pensadores da época, abriu uma escola de filosofia em Roma. Depois da sua conversão, exerceu um apostolado fecundo precisamente por meio das suas aulas. Defendeu a fé cristã com a sua sabedoria em momentos difíceis para o cristianismo. Conservam-se as suas Apologias dirigidas aos imperadores Antonino e Marco Aurélio. Morreu mártir em Roma durante a perseguição deste último. Pelo empenho com que defendeu a fé com a sua ciência, e pelo valor da sua vida, Leão XIII estendeu a sua festa litúrgica a toda a Igreja universal.

I. NOS COMEÇOS, A FÉ arraigou entre pessoas de profissões simples: tintureiros, cardadores de lã, soldados, ferreiros… As numerosas inscrições encontradas nas catacumbas mostram-nos a variedade de ofícios e de trabalhos: taberneiros, barbeiros, alfaiates, marmoristas, tecelões… Uma dessas inscrições representa um auriga, de pé na sua biga, tendo na mão direita uma coroa e na esquerda a palma do martírio.

Em breve o cristianismo estendeu-se a todas as classes sociais. No século II, existiam senadores cristãos, como Apolônio; altos magistrados, como o cônsul Liberal; advogados do foro romano, como Tertuliano; filósofos, como São Justino, cuja festa celebramos hoje, e que se converteu à fé cristã em idade bastante adulta.

Os primeiros cristãos não se separavam dos seus concidadãos, vestiam-se como as pessoas do seu tempo e da sua região, exerciam os seus direitos e cumpriam os seus deveres cívicos. Como os outros, freqüentavam as escolas públicas sem se envergonharem da sua fé, embora o ambiente pagão fosse durante muito tempo adverso à Boa-Nova. A defesa da fé – o direito de vivê-la, sendo ao mesmo tempo cidadãos romanos iguais aos seus semelhantes – seria levada a cabo com uma constância admirável nas circunstâncias mais diversas, que iam das conversas espontâneas no mercado ou no foro ao recurso às armas da inteligência, como o fizeram São Justino e outros nas suas apologias do cristianismo.

Todos, cada um no seu lugar, souberam dar um testemunho sereno de Jesus Cristo, e essa foi a melhor apologia da fé. Um desses exemplos vivos da fé ficou registrado num grafito que chegou até aos nossos dias. No Palatino, a colina ocupada pelo palácio do Imperador e pelas vilas dos nobres romanos, existia uma escola em que se formavam os pajens da corte imperial. Devia haver entre os alunos um cristão chamado Alexamenos, pois alguém desenhou na parede um homem com cabeça de asno, cravado numa cruz muito tosca e tendo ao lado uma figura humana. Junto do desenho pode-se ler esta inscrição: Alexamenos adora o seu deus. Pois bem, abaixo dessa inscrição, o jovem escreveu como resposta: Alexamenos fiel1.

Este grafito é também um eco das calúnias que circulavam freqüentemente em torno dos cristãos. Entre as pessoas do povo abundavam rumores, mexericos, intrigas, histórias incríveis… Entre as classes mais cultas repetiam-se com desdém frases como as que nos transmitiu Tertuliano: “É um bom homem, esse Caio Sexto. Só é pena que seja cristão!” Ou esta outra: “Estou verdadeiramente surpreendido de que Lúcio Tício, um homem tão inteligente, se tenha feito cristão”. E Tertuliano comenta: “Não lhes passa pela cabeça perguntar-se se Caio é um homem bom e Lúcio inteligente precisamente por serem cristãos; ou se não se terão feito cristãos precisamente por um deles ser um homem bom e o outro inteligente”2.

São Justino soube mostrar onde estava a grandeza da fé cristã, em comparação com todos os pensamentos e ideologias em voga: “Porque – diz – ninguém acreditou em Sócrates a ponto de dar a vida pela sua doutrina; mas creram em Cristo não só os filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas totalmente ignorantes, que souberam desprezar a opinião do mundo, o medo e até a morte”3. O próprio Justino morrerá mais tarde em testemunho da sua fé. O Senhor pede-nos a mesma firmeza em qualquer situação em que nos encontremos, mesmo que tenhamos de enfrentar vez por outra um ambiente completamente adverso à doutrina de Cristo.

II. NOS MOMENTOS DE PERSEGUIÇÃO ou de maiores tribulações, os cristãos continuavam a atrair muitos outros para a fé. As próprias dificuldades eram ocasião para uma ação apostólica mais intensa, com o aval do exemplo e da coragem pessoal. As palavras cobravam então uma força particular: a da Cruz. O martírio era um testemunho cheio de vigor sobrenatural e de grande eficácia apostólica. Às vezes, os próprios verdugos abraçavam a fé cristã4.

Se formos verdadeiramente fiéis a Cristo, é possível que encontremos dificuldades de diferentes gêneros: desde a calúnia e a perseguição aberta até a frieza com que nos recebem, a discriminação na provisão de cargos públicos, a ironia ou o comentário leviano no trabalho ou no meio social… O discípulo não é maior do que o Mestre5. A vida do cristão e o seu sentido da existência – queiramos ou não – chocarão com um mundo que pôs o seu coração nos bens materiais.

Esses momentos de dificuldade são especialmente aptos para exercermos uma atividade apostólica eficaz: comentando a verdadeira natureza da Igreja, esclarecendo as consciências sobre os pontos mais vivos da doutrina moral cristã, falando claramente de Cristo e da vida de fé… E tudo isso sem polêmicas, em clima de amizade, com argumentos objetivos e serenos, pois a verdade impõe-se necessariamente. Os primeiros cristãos foram vitoriosos no seu empenho e ensinaram-nos o caminho: a sua fidelidade incondicional a Cristo foi mais forte que a atmosfera pagã que os rodeava. “Submersos na massa hostil, não procuraram no isolamento o remédio para o contágio e a garantia para a sobrevivência; eram conscientes de serem fermento de Deus, e a sua ação calada e eficaz acabou por transformar aquela mesma massa. Souberam, sobretudo, estar serenamente presentes no seu mundo, não desprezar os valores da sociedade nem desdenhar as realidades terrenas”6.

Se nos momentos de incompreensão, de recusa ou de indiferença, perseverarmos com firmeza na tarefa apostólica, os frutos não demorarão a surgir nos lugares mais inesperados. O apostolado é tanto mais eficaz quanto mais longe se projeta a sombra redentora da Cruz. Disse-o o Senhor: Quando eu for levantado ao alto, tudo atrairei a mim7.

III. NEM AS MURMURAÇÕES e calúnias, nem o próprio martírio, conseguiram que os cristãos se fechassem em si mesmos, se isolassem do seus concidadãos e se sentissem exilados no seu próprio meio social. Mesmo nos momentos mais duros da perseguição, a presença cristã no mundo foi viva e operante. Os cristãos defenderam o seu direito de serem conseqüentes com a sua fé: os intelectuais, como Justino, com os seus escritos cheios de ciência e de senso comum; as mães de família, certamente com as suas conversas amáveis e com o seu exemplo de vida…

E foi no meio desse vendaval de contradições que viveram com especial empenho o mandamento novo de Jesus8: “Foi por meio do amor que eles abriram caminho naquele mundo pagão e corrompido”9. “É sobretudo esta prática da caridade que nos imprime um selo peculiar aos olhos de muitos. Vede como se amam, dizem de nós, já que eles se odeiam mutuamente. E como estão dispostos a morrer uns pelos outros, quando eles estão antes preparados para se matarem uns aos outros”10, escreveu-nos Tertuliano.

Os cristãos não reagiram com rancor ante os que de uma forma ou de outra os maltratavam11. E, como os nossos primeiros irmãos na fé, também nós devemos procurar afogar o mal em abundância de bem12. João Paulo I, na catequese que realizou no seu curto pontificado, mencionou a exemplar história das dezesseis carmelitas martirizadas durante a Revolução francesa e beatificadas por Pio X. Consta que durante o processo se pediu que fossem condenadas à morte “por fanatismo”. Uma delas perguntou ao juiz: “Que quer dizer fanatismo?”, e ele respondeu: “A vossa tola pertença à religião”. Pronunciada a sentença, enquanto eram conduzidas ao cadafalso, cantavam hinos religiosos; chegando ao lugar da execução, ajoelharam-se uma após a outra diante da Superiora para renovarem o seu voto de obediência. Depois entoaram o Veni Creator; o canto ia-se tornando mais fraco à medida que as cabeças caíam sob a guilhotina. Ficou por último a Superiora, cujas derradeiras palavras foram estas: “O Amor sempre será vitorioso, o amor tudo pode”13. Sempre foi assim.

Mas a melhor caridade dos primeiros cristãos exercia-se com os irmãos mais fracos, com os que se tinham convertido recentemente e com todos os que se encontravam mais necessitados, a fim de fortalecê-los. As Atas dos Mártires14 registram em todas as suas páginas pormenores concretos dessa preocupação pela fidelidade dos mais fracos. Não deixemos de fazer o mesmo nos momentos de contradição, de calúnia, de deserção: amparar, “agasalhar” aqueles que, pela idade ou pelas suas circunstâncias particulares, mais precisem de ajuda. A nossa firmeza e alegria nesses momentos será de grande utilidade para os outros.

Ao terminarmos este tempo de oração, dirigimo-nos a Nossa Senhora com uma oração que os primeiros cristãos recitaram muitas vezes: Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix… “À vossa proteção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as súplicas que em nossas necessidades vos dirigimos, mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita”15.

(1) cfr. A. G. Hamman, La vida cotidiana de los primeros cristianos, Palabra, Madrid, 1986, pág. 108; (2) cfr. Tertuliano, Sobre a idolatria, 20; (3) São Justino, Apologia, II, 10; (4) cfr. D. Ramos, El testimonio de los primeros cristianos, Rialp, Madrid, 1969, pág. 32; (5) Mt 10, 24; (6) J. Orlandis, La vocación cristiana del hombre de hoy, 3ª ed., Rialp, Madrid, 1973, pág. 48; (7) Jo 12, 32; (8) cfr. Jo 13, 34; (9) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 172; (10) Tertuliano, Apologético, 39; (11) cfr. Didaché, I, 1-2; (12) cfr. Rom 12, 21; (13) cfr. João Paulo I,Angelus, 24-IX-1978; (14) cfr. Actas de los martires, BAC, Madrid, 1962; (15) A. G. Hamman, Oraciones de los primeros cristianos, Rialp, Madrid, 1956, n. 107 e nota 60.

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